quinta-feira, 9 de julho de 2009

Negros

Carlos Drummond de Andrade



NEGRA A negra para tudoa negra para todosa negra para capinar plantarregarcolher carregar empilhar no paiolensacarlavar passar remendar costurar cozinharrachar lenhalimpar a bunda dos nhozinhostrepar.A negra para tudonada que não seja tudo tudo tudoaté o minuto de(único trabalho para seu proveito exclusivo)morrer.HOMEM LIVREAtanásio nasceu com seis dedos em cada mão.Cortaram-lhe os excedentes.Cortassem mais dois, seria o mesmoadmirável oficial de sapateiro, exímio seleiro.Lombilho que ele faz, quem mais faria?Tem prática de animais, grande ferreiro.Sendo tanta coisa, nasce escravo,o que não é bom para Atanásio nem para ninguém.Então foge do Rio Doce.Vai parar, homem livre, no Seminário de Diamantina,onde é cozinheiro, ótimo sempre, esse Atanásio.Meu parente Manuel Chassim não se conforma.Bota anúncio no Jequitinhonha, explicadinho:Duzentos mil-réis a quem prender crioulo Atanásio.Mas quem vai prender homem de tantas qualidades?
A verdade dividida

Carlos Drummond de Andrade 100 anos: 1902-2002



Em Corpo, o título era "Verdade". Talvez o autor tenha achado esse título um tanto pretensioso e atenuou essa possibilidade, mudando-o para "A Verdade Dividida". No terceiro verso da terceira estrofe, o que era "seus fogos", passou a ser "os seus fogos". Na mesma estrofe, o que antes era "metades" transformou-se em "duas metades".
Na última estrofe, em lugar de "perfeitamente bela", como se lê ao lado, estava "totalmente bela". O trecho "E carecia optar" evoluiu para "E era preciso optar". A frase final permaneceu a mesma, mas a palavra "conforme" pertencia, antes, ao penúltimo verso.
A porta da verdade estava abertamas só deixava passarmeia pessoa de cada vez.Assim não era possível atingir toda a verdade,porque a meia pessoa que entravasó conseguia o perfil de meia verdade.E sua segunda metadevoltava igualmente com meio perfil.E os meios perfis não coincidiam.Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia os seus fogos.Era dividida em duas metadesdiferentes uma da outra.Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.Nenhuma das duas era perfeitamente bela.E era preciso optar. Cada um optouconforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Poema de sete faces


Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homensque correm atrás de mulheres.A tarde talvez fosse azul,não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.Porém meus olhosnão perguntam nada. O homem atrás do bigodeé sério, simples e forte.Quase não conversa.Tem poucos, raros amigoso homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu não era Deusse sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo,se eu me chamasse Raimundoseria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizermas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.
TARDE DE MAIO
Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior deseus mortos,assim te levo comigo, tarde de maio,quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,surdamente lavrava sob meus traços cômicos,e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantese condenadas, no solo ardente, porções de minh'almanunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza sem fruto.Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.Eu nada te peço a ti, tarde de maio,senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,sinal de derrota que se vai consumindo a ponto deconverter-se em sinal de beleza no rosto de alguémque, precisamente, volve o rosto, e passa...Outono é a estação em que ocorrem tais crises,e em maio, tantas vezes, morremos.Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,já então espectrais sob o aveludado da casca,trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebrescom que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carrofúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstitolutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.Nem houve testemunha.Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.Quem reconhece o drama, quando se precipita sem máscaras?Se morro de amor, todos o ignorame negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;não está certo de ser amor, há tanto lavou a memóriadas impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,perdida no ar, por que melhor se conserve,uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.
Carlos Drummond de Andrade
Dicionário etimoLÓGICO I

Dicionário Português-Português

• Armarinho - Vento que vem do mar.
• Barganhar - Herdar um botequim.
• Barracão - Cidadão que proíbe a entrada de cães.
• Cerveja - Sonho de toda revista.
• Coitado - Estuprado.
• Democracia - Sistema de governo do inferno.
• Detergente - Ato de deter pessoas.
• Homossexual - Sabão em pó para lavar partes íntimas.
• Missão - Culto religioso desses que enchem o saco.
• Padrão - Padre muito alto.
• Presidiário - Indivíduo preso todos os dias.
• Unção - Um que não está doente.



Dicionário etimoLÓGICO II

• Comerciante - Se alimenta em frente.
• Comensal - Se alimenta com cloreto de sódio.
• Comichão - Devora terra.
• Comodista- A que distância fica?
• Comover - Maneira de olhar.
• Compenetrar - Entrar a pé.
• Competição - Tem um pé de crioulo.
• Consumo - O que ainda não foi expremido.
• Convocação- Tem avô de filhote de tubarão.
• Demolição- Aula do diabo.
• Demover - Olhar o diabo.
• Desenvolta - Dez pessoas cercando uma.
• Desespero - Aguardo uma dezena.
• Destroços - Uma dezena de coisas.
• Dogmatizar - Misturar cães ingleses.
• Filatelia - Tomava conhecimento de tuas idéias o pessoal que esperava um atrás do outro.
• Informação - Está se fazendo.
• Janota - Começa a perceber.
• Jogador - Sujeito que arrisca a dor alheia.
• Leiteria - Possuiria postulados legais.
• Manutenção - O nervosismo do irmão.
• Maratona - À superfície do oceano.
• Marfim - Onde acaba o oceano.
• Mortificar - Transformar-se em defunto.
• Novecentos - Sujeito que vê centenas de nós por toda parte.
• Obtemperar - Fazer salada com a letra B.
O decálogo do bom corruptor



I.
Nunca ninguém perdeu dinheiro investindo na desonestidade.

II.
Só louco rasga dinheiro? Bobagem. Nem louco rasga dinheiro. Experimente jogar uma nota de cinqüenta (ou mesmo de um!) num pátio de insanos. Vai ter briga pra pegar.

III.
Como posso ser compreendido por milhões de medíocres que continuam a acreditar em caderneta de poupança?

IV.
Na nota do freguês nunca esquecer de somar também o dia e o ano. Se o freguês reclamar a gente dá outra nota e põe a diferença como desconto para clientes especiais. Os bancos fazem isso o tempo todo.

V.
O ser humano só aprendeu a contar depois que o dinheiro apareceu na face da Terra. O homem aprendeu a contar pra poder contar dinheiro.

VI.
Lucro ilícito é precaução mínima que você tem que tomar pra não ter prejuízo.

VII.
O lucro, disse o banqueiro, é minha pátria. Justificando ter se naturalizado paraguaio.

VIII.
Quanto é muito? Quanto é demais? Eu, por exemplo, que moro no Rio à beira-mar, tenho carro (1998, é verdade) e como nos melhores restaurantes, me considero um homem pobre.

IX.
Pra quem gosta de puxar, qualquer saco serve. Acaba sempre puxando o saco certo. O de dinheiro.

X.
Quando o paciente emocionado, diante do médico que lhe salvou a vida, declarou que "não tinha como lhe pagar", o médico sábio esclareceu: "Meu filho, desde que os fenícios criaram o sistema fiduciário essa questão está plenamente resolvida".



Millôr Fernandes
Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundoque amava Maria que amava Joaquim que amava Lilique não amava ninguém.João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandesque não tinha entrado na história.

Drummond
Precisão

O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.
Clarice Lispector