quinta-feira, 9 de julho de 2009

TARDE DE MAIO
Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior deseus mortos,assim te levo comigo, tarde de maio,quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,surdamente lavrava sob meus traços cômicos,e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantese condenadas, no solo ardente, porções de minh'almanunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza sem fruto.Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.Eu nada te peço a ti, tarde de maio,senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,sinal de derrota que se vai consumindo a ponto deconverter-se em sinal de beleza no rosto de alguémque, precisamente, volve o rosto, e passa...Outono é a estação em que ocorrem tais crises,e em maio, tantas vezes, morremos.Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,já então espectrais sob o aveludado da casca,trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebrescom que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carrofúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstitolutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.Nem houve testemunha.Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.Quem reconhece o drama, quando se precipita sem máscaras?Se morro de amor, todos o ignorame negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;não está certo de ser amor, há tanto lavou a memóriadas impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,perdida no ar, por que melhor se conserve,uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.
Carlos Drummond de Andrade

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